domingo, 2 de fevereiro de 2020

O ARREPENDIMENTO, Martha Medeiros:

"Tive um pequeno apartamento que vendi mobiliado, mas me aconselharam a retirar ao menos o lustre, já que era uma peça que parecia rara. Então lá fui eu retirar do teto um lustre enorme e empoeirado, e até hoje ele anda pra lá e pra cá no bagageiro do meu carro, pois não encontro tempo para ir a um antiquário. Cada vez que abro o porta-malas, onde costumo transportar as sacolas do supermercado, me deparo com o espaço ocupado pelo lustre e me pergunto: 
por que não o deixei para o novo morador? Ganância, senhores.

Essa é uma pequena história sobre arrependimento. Igual a essa, tenho dezenas,
todas tão desimportantes quanto. Convites que não deveria ter aceitado,
desabafos que eu não precisava ter feito, e-mails escritos depois de três cálices de vinho, esse tipo de coisa, bobeiras contumazes que não estragam nossa vida,
apenas fazem com que a gente se envergonhe por uns dias e acabe aprendendo mais sobre si mesmo. Os poucos remorsos sérios têm a ver com relações afetivas e familiares
(a velha culpa: onde eu estava que não vi isso, não percebi aquilo?), mas, ainda,
tudo dentro da cota permitida de vacilo.
Arrependimentos nos amadurecem e nos ajudam na correção de rota.
Só se tornam um problema quando a rota terminou,
quando falta apenas meia-dúzia de curvas para a estrada chegar ao fim.
Ninguém simpatiza com a velhice avançada e motivos não faltam: doenças,
falta de memória, perda da autossuficiência e outros enguiços comuns a quem rodou bastante. Ainda assim, doloroso mesmo é chegar tão longe e descobrir que entre os arrependimentos há um, ou dois, ou vários que não foram desimportantes, e sim cruciais.
Excetuando as pessoas que confiam na vida eterna, para todas as outras, que acreditam apenas na vida antes da morte, nada pode ser mais triste do que, no balanço final, descobrir que abriu mão de um amor por causa de conveniências, que não foi amigo dos filhos porque só pensava em si mesmo, que não realizou projetos pessoais por causa de preguiça, que nunca arriscou uma guinada por causa de medos que agora parecem sem sentido, que gastou seu tempo com gente idiota e hábitos herdados de uma sociedade fútil, que não se permitiu conviver com pessoas diferentes por preconceito. Esse é o arrependimento que não é uma bobeira contumaz, pois resulta numa secreta tragédia pessoal: o desperdício de uma vida que poderia ter sido mais bem preenchida, mais estimulante e com mais oportunidades de expansão.
Tem boa notícia no final do texto? Tem. É sobre aquela meia dúzia de curvas que restam. Pode parecer pouco, mas é o que se tem para hoje, e hoje é tudo o que importa."