- Pensa bem, Cleide... Se eu decreto a prisão dele agora, a situação fica muito pior não só para você, mas especialmente para os meninos.
Ela insistia. Aprendera a ler os artigos do Código Civil e, para Cleide, não havia qualquer outra possibilidade que não fosse a interpretação literal das normas. Se está escrito que o devedor de alimentos, depois de citado, tem três dias para pagar ou justificar o inadimplemento e, não o fazendo, deve ter a prisão decretada, não havia outra alternativa. Era prender ou prender!
Cleide parecia não queria o mal do companheiro. Afinal, escolheu viver com ele grande parte da sua vida. O vínculo que tinha com Chicão era para a sempre: quatro filhos e o quinto a caminho, com nascimento esperado para as próximas semanas.
Mais de uma década na mesma Vara de Família e algumas personagens se transformavam em amigos íntimos. Acompanhei a família crescendo. A cada parto, uma ação de alimentos e a advertência que, embora não fizesse parte do pacote processual, era repetida ao final das audiências:
- Agora, chega, pessoal! Você procura o médico para tomar anticoncepcional ou então o Chicão faz a vasectomia.
Ambos sempre diziam que não conseguiam marcar horário no SUS ou agendar a cirurgia, no caso dele. Bastava eu ameaçar encaminhar um ofício para que o atendimento fosse realizado e uma cumplicidade não combinada se instalava com o deixa-que-eu-deixo que durava até uma outra gestação.
Raramente as audiências eram concluídas. Reconciliações, suspensões dos processos, desistência até o dia que não deu mais: Cleide descobrira que não era a única no projeto de Chicão de povoar o mundo. Ele tinha outro filho, cuja existência só chegou ao conhecimento dela porque, ao abrir a porta para o Oficial de Justiça, leu um mandado de citação para uma ação de investigação de paternidade com pedido de pensão alimentícia.
Ele, como sempre repetia, não era homem de fugir das suas responsabilidades. Assumiu o filho sem nem fazer o exame de DNA. Era mesmo dele e ele tinha obrigação de sustentar.
Em uma matemática improvável, Chicão pagava 20% do salário mínimo para cada filho, além de se responsabilizar pelos medicamentos e material escolar dos mais crescidos.
Emprego formal ele nunca teve. Cresceu como biscateiro e já havia feito um pouco de tudo. Servente de obra, ajudante de pedreiro, faxineiro. A grande oportunidade da vida veio no meio da praça. Enquanto catava latinhas para vender, um grupo de teatro mambembe o fascinou e ele percebeu que podia ganhar a vida se fantasiando para alavancar os pequenos comércios do centro da cidade.
Não era um homem-sanduíche qualquer. Com quase dois metros de altura, sorriso largo e pele muito negra, tinha atitude e era disputado pelos lojistas para, com a ajuda do megafone, oferecer revelação de fotos, camisetas genéricas de marcas conhecidas, produtos de alisamento e tratamento capilar.
No fim da tarde, distribuía brindes na porta do supermercado, sempre irradiando felicidade e encantando os que ali passavam. Chiquinha era o apelido escolhido para uma coreografia ao som de música baiana, todas as vezes que usava uma peruca loira. Um sucesso!
Era um artista completo. Inclusive na arte da sedução. Mesmo com a vida paralela descoberta pela mulher, nas visitas eventuais à família, mais uma vez ela engravidara.
Durante um período, ele pagou a pensão direitinho. Nos últimos meses, no entanto, alguns patrões atrasaram o salário e ele se enrolou.
Uma audiência especial foi a forma encontrada para que ele apresentasse uma proposta razoável de parcelamento. Sabia que ele não era um devedor contumaz. Certamente resolveria o problema das crianças, sem a necessidade de uma prisão às vésperas do Natal.
Intransigente, Cleide evitava olhar para Chicão. Não cairia na lábia fácil mais uma vez. Os meninos, no entanto, pularam no colo do pai, tão logo ele entrou na sala. Não era qualquer um que tinha a chance de encontrar o próprio pai, meio fantasiado de Papai Noel. A barba, o casaco e o gorro foram tirados no corredor. Mas a calça, não deu tempo. Correu para não se atrasar e precisava voltar logo para a frente do mercado.
-Dinheiro eu tenho, doutora. Só falta receber. Se eu não voltar pro trabalho agora, aí mesmo é que não recebo nada e não vai ter Papai Noel pra ninguém... O chefe prometeu que me pagava hoje. É o dia mais movimentado lá.
Olhando para Cleide, prosseguiu:
- Quebra aí, morena... Imagina os moleques sem o pai no Natal.
Ela não aceitava parcelamento. Não era obrigada a aceitar. Quatro crianças e sem a pensão era mesmo impossível e, por mais carismático que fosse Chicão, tinha que se responsabilizar pelos filhos que escolheu ter.
- Quanto é que você tem para receber hoje, Chicão? Perguntei.
- É uma grana boa, doutora! Dá pros atrasados e pro Natal.
- Faz o seguinte, liga para o seu patrão e avisa para ele que você está no Fórum e que a juíza vai te prender se você não pagar a pensão.
Do outro lado da linha, o patrão não acreditou no que Chicão dizia. Pedi o telefone e, em uma intervenção inusitada e inexistente nos artigos dos Códigos, me apresentei:
- Seu Haroldo, é a Juíza falando. O Chicão me disse que, se receber o salário, ele pode pagar a pensão. É verdade isso?
Seu Haroldo gaguejou um pouco, mas assentiu. Revelou que o rapaz fazia muita falta naquele fim de tarde para o movimento, na véspera de Natal. Sugeri que ele mandasse alguém levar o dinheiro ao Fórum e eu suspenderia a audiência. Era a forma de evitar a prisão e possibilitar que Chicão retomasse o seu papel de Papai Noel.
Duas horas depois, pensão paga, Cleide satisfeita, Chicão, de Noel, no megafone e a certeza de que não seria o nosso último encontro. Apenas mais uma Noite Feliz.