quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Sobre a cidade que queremos (Anita Di Marco)

(Espaço público em Medellín, Colômbia - Foto Abilio Guerra)

“Educação significa provocar mudanças na mente; não na dos outros, mas sim na própria mente. Para que se preocupar em mudar os outros? Mude a si mesmo. Queremos mudar todo mundo, menos a nós mesmo”.
Krishnamurti

“Por que temos prazer em passear por cidades bem conformadas urbanisticamente e continuamos a construir cidades espacialmente desestruturadas?” (1)
Sérgio Magalhães

Sempre vale a pena refletir sobre o conceito de cidade que queremos. Hoje, quase 55% da população mundial vivem em áreas urbanas. No Brasil, segundo o Censo de 2010, somos quase 85% da população. Ou seja, o ritmo de crescimento das populações em áreas urbanas vem crescendo ano a ano, a despeito do grande esforço de muitos em transformar as nossas cidades em vilões da qualidade de vida. Passamos de 746 milhões em 1950 para 4 bilhões em 2014. É um salto considerável. Ora, viver em áreas urbanas, portanto, é uma situação irreversível – é nas cidades que a maioria parece querer viver, conviver e se desenvolver... Um olhar crítico sobre o nosso fazer urbano, sim, é fundamental, mas com uma visão mais abrangente que encare o tema da urbanização como solução e não como problema. Parece-me que o ‘X’ da questão é o nosso conceito de cidade. Então, é preciso refletir e dilatar esse conceito geral a partir de uma abordagem diferenciada e inovadora.

(Espaço público em Barcelona, Espanha - Foto Abilio Guerra)

O que significa, então, essa visão abarcante a partir de um olhar crítico sobre o nosso fazer urbano? Significa que a cidade é uma construção humana, talvez a mais complexa delas, mas a primazia que deveria ser dos homens, a cada dia, parece ser mais e mais do automóvel. Significa que é preciso voltar a incluir o homem nas nossas decisões, como prioridade máxima, lugar de onde o ser humano nunca deveria ter saído. Significa que é preciso buscar soluções eficientes, democráticas, de baixo custo e que levem dignidade a todos. Significa que, no caso do urbanismo, é fundamental que a redefinição do território tenha por base o ser humano, o pedestre. E, sim. Esta é uma escolha política, muito mais do que técnica. A pergunta que não quer calar, portanto, é: qual nosso conceito de cidade, que tipo de cidade queremos, criamos e mantemos – para pessoas ou carros; para convivência ou segregação, para desenvolvimento humano geral ou estagnação?

Retomando a origem dessa questão, lembramos que logo depois da segunda guerra, os Estados Unidos emergiram como potência e a combinação de dois fatores – florescimento da indústria automobilística e o incentivo à construção de rodovias com o Federal-Aid Highway Act – promoveu a descentralização urbana, garantindo o processo de suburbanização no país e a debandada da classe média dos centros tradicionais em direção aos novos bairros. Os subúrbios eram vendidos como “territórios felizes” – terra barata, grandes lotes, verde, liberdade, sem aglomerações e sem o estresse racial dos centros urbanos etc... O período foi conhecido como o The White Flight, já que a população de classe média, predominantemente branca, incomodada com a aglomeração urbana e racial, resolveu aderir em massa ao novo sonho de consumo. No entanto, embora vistos como o ideal da classe média americana, os subúrbios eram sinônimo de exclusão social e dispersão urbana, criaram uma cisão entre moradia e trabalho e transferiram as funções dos espaços públicos tradicionais para os shopping centers, transformando-os em espaços de convívio para as famílias dos subúrbios. Ou seja, houve uma privatização da vida e das interações típicas do espaço público. No entanto, mesmo nos subúrbios, as pessoas ainda dependiam do antigo centro para trabalho e serviços (2).

(Espaço público em Bogotá, Colômbia - Foto Abilio Guerra)

Já na década de 1960, especialistas começaram a questionar o estilo de vida dos subúrbios e seus efeitos como necessidade de grandes deslocamentos e congestionamentos, espaços públicos e ruas com pouca ou nenhuma vida urbana, interação social ou movimentação de pedestres etc. Por outro lado, havia o abandono dos centros tradicionais, transformando aquelas centralidades, antes movimentadas e cheias de vida, em lugares ermos, vazios, sem vida, sem convivência e sem segurança, fora dos horários comerciais. São de amplo conhecimento os trabalhos de Jane Jacobs (3), Kevin Lynch (4), Wiliam H. Whyte (5), Donald Appleyard, Christopher Alexander, Clare Cooper Marcus (6), Peter Bosselmann, Aldo Rossi e os irmãos Bob e Léon Krier nos anos 1980; e, mais recentemente, Jan Gehl, Jeff Speck, entre outros e, embora suas críticas sejam feitas a locais específicos, elas se aplicam a práticas utilizadas no mundo todo e, portanto, servem como alerta para analisarmos a nossa realidade.

Segundo Jan Gehl, arquiteto dinamarquês e estudioso do tema desde a década de 1960, o episódio que serviu para fazê-lo refletir mais profundamente sobre o conceito de cidade foi a pergunta feita por sua esposa, a psicóloga Ingrid Gehl: “Por que vocês, arquitetos, se preocupam tanto com edifícios e tão pouco com pessoas?” (7). A partir de então, Gehl transformou-se em um infatigável defensor da cidade e seus espaços públicos como locais de encontro, buscando estratégias para criar cidades sustentáveis e agradáveis, seguras e cheias de vida (8).

Jeff Speck, urbanista de Washington, é outro crítico implacável do modelo dos subúrbios, classificando-os como sua versão particular de inferno e como o maior erro de planejamento urbano dos EUA, infelizmente, ainda hoje copiado em maior ou menor grau. Por extensão, faz essa crítica também aos tais condomínios fechados, ao dizer que moradores de subúrbios ou condomínios deveriam morar na zona rural, porque demonstram não querer contato ou interação social com outros membros da comunidade e mostram uma atitude inversamente proporcional à cidadania. Defendendo a criação de cidades sustentáveis e para pedestres, o urbanista lançou em 2012 o livro Walkable City, publicado em português como Cidade caminhável (9). O livro, basicamente, é um manifesto e um manual de como se criar cidades voltadas para o pedestre e que incentivem deslocamentos a pé, de bicicleta e em transporte público. Ele compara a situação das cidades norte-americanas com as europeias, lamentando que as primeiras tenham privilegiado o transporte individual em detrimento do caminhar e do transporte coletivo, caso das europeias (10). Aspectos como diversidade de usos, segurança e iluminação (física e de percepção), conforto (calçadas, equipamentos urbanos e mobilidade) e interesse (paisagismo e arquitetura) fazem parte de seu arsenal de tópicos a serem estudados para a transformação das cidades em ambientes propícios à sua função precípua – ponto de encontro, de trocas, de interação e desenvolvimento humano.

(Espaço público em Quito, Equador - Foto Abilio Guerra)

Ainda que a prerrogativa de propor, atuar e transformar os espaços de nossas cidades caiba ao poder público, muitas vezes, percebe-se que esses gestores abrem mão desse seu poder de indução e transformação e se eximem de criar, na cidade, condições para essa vivência, quase que delegando a espaços privativos a função de entreter, prover diversidade de usos, conforto e possibilidade de convivência entre cidadãos. A cidade fica abandonada a si mesmo e área cercada, privada e excludente torna-se referência de ponto de encontro, antes prerrogativa dos espaços públicos. Percebe-se nessas atitudes o início do fim da vida urbana, concebida como tal. É imperativo que a cidade aprofunde suas ações nos centros tradicionais, resgatando seu significado e seu papel.

É certo, também, que qualquer proposta de modificação de uso das estruturas urbanas leva um tempo para mostrar resultados efetivos. Alguns, como mudanças de comportamento, por exemplo, podem levar décadas. No entanto, no universo do planejamento urbano, isso seria como um piscar de olhos. O fundamental é que as propostas sejam sempre feitas pensando na cidade, no futuro, nos seus habitantes e não no término dos mandatos de tal ou qual prefeito. Prefeitos, vereadores e secretários e demais gestores são servidores públicos e como tal, devem prestar contas às cidades que administram e a seus cidadãos, como um todo.

Como urbanistas, moradores, turistas ou simples apreciadores de cidades, percebemos a força de determinados lugares, bem como seu poder de atração. Lugares agradáveis, aconchegantes, com identidade e presença despertam sensações de alegria, pertencimento e conforto; estimulam a apropriação, a interação social e o encontro. Lugares, enfim, que permitem uma vivência urbana rica e positiva. Conquanto ainda seja difícil fazer frente à pressão do automóvel particular e à acomodação das pessoas, algumas medidas, há algum tempo, já vêm sendo aplicadas no mundo, inclusive em algumas cidades brasileiras: ciclovias e sua infraestrutura, investimento em transporte de massa e de qualidade, corredores de ônibus, adensamento nas áreas centrais, sobretudo junto aos eixos de transporte, diminuição da velocidade etc. Londres, Paris, Madrid, Oslo, Copenhague, Nova York, Melbourne, Sidney, Bogotá, São Paulo, por exemplo, têm implementado, entre outras, ações para diminuir a velocidade nas vias urbanas e limitar o acesso de carros às áreas centrais. É só uma questão de tempo ou de se habituar com a opção pelo coletivo. De modo geral, o resultado só tem sido elogiado e bem aproveitado. Entre nós, no entanto, a gritaria já começou... Lamentavelmente, por aqui percebe-se o péssimo e recorrente hábito de descontinuar boas práticas urbanas quando estas vêm de mandatos anteriores.

(Espaço público em São Paulo, Brasil - Foto Abilio Guerra)

De qualquer forma, o importante é lembrar que não existem modelos prontos. Pode-se tomar ideias emprestadas, mas não soluções. Cada cidade deve formular a proposta de transformação em função de suas próprias características, objetivos e recursos disponíveis. Vale sempre lembrar, todavia, que a cidade é uma construção complexa e coletiva; todos têm direito a uma cidade melhor (11), mais agradável, segura, sem estresse, com espaços que integrem e não excluam, onde todos tenham mais dignidade, qualidade de vida e se sintam acolhidos. Uma cidade onde o morador se sinta convidado a frequentar e se aproprie dos espaços públicos, praças, largos e calçadas. De novo, referimo-nos aos espaços públicos, não aos privados. Por que se transfiro meu direito à cidade a um empreendimento particular, como posso esperar que minha cidade se torne minha de novo?

Importante aqui mencionar Joe Riley, ex-prefeito de Charleston, na Carolina do Sul, que dirigiu a cidade por dez mandatos consecutivos, de dezembro 1975 a janeiro 2016. Ao justificar as alterações propostas para a cidade, Riley dizia que toda cidade deveria fazer cantar o coração de seus cidadãos, mas principalmente, daqueles para quem a cidade representa todo o seu universo que são os mais pobres, mais idosos ou com menos condições de se deslocar e viajar pelo mundo. Daí a responsabilidade do setor público de propor e tornar as cidades não só funcionais, mas também planejadas de forma a contemplar estes sentimentos de acolhimento e pertencimento, porque o modo como pensamos, projetamos e construímos nossas cidades afeta os relacionamentos, desempenho e saúde física e psíquica de seus habitantes. Em última instância, afetam a nossa experiência urbana. Uma cidade inclusiva, democrática, diversificada, mais equilibrada e menos desigual deixa as pessoas mais felizes e menos estressadas, criando o melhor dos ambientes – uma condição em que todos ganham – gestores públicos, iniciativa privada e moradores.

(Espaço público em Paris, França - Foto Abilio Guerra)

Ainda reforçando a importância do ambiente urbano na nossa vida, Richard Florida, pesquisador das cidades criativas e professor de Administração e Criatividade da Universidade de Toronto, afirma que a escolha mais fundamental de qualquer pessoa é decidir em que cidade quer viver. Todavia, já que nem todos podem ter esta opção, podemos escolher e agir para conseguir o tipo de cidade em que queremos viver. Como já dito, tudo é uma questão de tempo já que, em qualquer mudança de paradigma, é preciso conceber e respeitar o tempo de transição, porque tudo o que é novo sempre leva um tempo para ser absorvido, sobretudo ideias que visem ao bem comum. Aliás, tempo de transição e tolerância se mostraram eficazes em vários casos:

Copenhagen: a implantação de ciclovias feita nos anos 70 levou quase 10 anos para mostrar resultados concretos;

San Francisco: a implantação do primeiro parklet em 2010 gerou grandes discussões por ter diminuído uma vaga para estacionamento nas ruas; hoje, seis anos depois, os parkets são um sucesso e não só lá;

Curitiba e Bogotá: com o seu sistema de vias expressas e exclusivas para ônibus, o urbanista Jaime Lerner, na época prefeito de Curitiba, foi o grande incentivador da ideia de mobilidade sustentável. Em meados de 2000 e inspirado no sistema de Curitiba, o então prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, gerou críticas do comércio local e de usuários de transporte individual por ter tirado faixas dos carros para a criação do corredor de ônibus do sistema de BRT, o TransMilênio, que virou referência mundial. Este sistema, somado aos 450 km de ciclovias, tornou Bogotá eficiente para o transporte de massa. Em várias de suas falas, como no discurso na ONU em 2001, o próprio Peñalosa dá o tom da importância do planejamento urbano ao afirmar que, embora nem sempre se possa sanar todos os problemas econômicos das cidades, planejá-las pode tornar seus habitantes mais felizes.

(Espaço público em Amsterdã, Holanda - Foto Abilio Guerra)

Cumpre destacar ainda que, em questões urbanas, como a mobilidade, por exemplo, não pode haver torcida – não se trata de um campeonato esportivo. Trata-se da cidade e deve-se torcer para a cidade inteira, porque se a cidade ganha, todo mundo ganha. Afinal, nunca é demais lembrar que a grande maioria desses problemas não depende exclusivamente do aspecto técnico, mas sobretudo do político. Como universo diversificado e rico que é, como espaço das trocas e das possibilidades, a cidade é um ambiente que pode ser aprimorado por cada um, pontual e globalmente. Não se trata apenas de questão estética, mas de fazer da cidade, de fato, a nossa segunda casa, a casa de todos, porque todos vivemos ali. E casa é um lugar que aconchega, que protege, que acolhe. É um porto seguro... Afinal, cada munícipe (cidadão ou servidor, pedestre ou motorista, produtor ou consumidor) é e sempre será corresponsável pela qualidade dos vários espaços urbanos, já que o todo é sempre maior do que a soma das partes. Querendo ou não, com suas ações e gestos, cada um é responsável por tornar a cidade mais humana, mais agradável, mais acolhedora e segura, mais justa e menos desigual, melhorando a interação e a experiência urbana de todos, sem exceção, transformando-a de fato na nossa casa maior (12).

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