domingo, 20 de fevereiro de 2011

INICIEMOS A SEMANA COM UMA CRÔNICA SOBRE TERAPIA

Crônica da Loucura  
                                              (Luís Fernando Veríssimo)

O melhor da Terapia é ficar observando os meus colegas loucos. Existem dois tipos de loucos. O louco propriamente dito e o que cuida do louco: o analista, o terapeuta, o psicólogo e o psiquiatra. Sim, somente um louco pode se dispor a ouvir a loucura de seis ou sete outros loucos todos os dias, meses, anos.

Se não era louco, ficou.

Durante quarenta anos, passei longe deles. Pronto, acabei diante de um louco, contando as minhas loucuras acumuladas. Confesso, como louco confesso, que estou adorando estar louco semanal.

O melhor da terapia é chegar antes, alguns minutos e ficar observando os meus colegas loucos na sala de espera. Onde faço a minha terapia é uma casa grande com oito loucos analistas. Portanto, a sala de espera sempre tem três ou quatro ali, ansiosos, pensando na loucura que vão dizer dali a pouco.


Ninguém olha para ninguém. O silencio é uma loucura. E eu, como escritor,  adoro observar pessoas, imaginar os nomes, a profissão, quantos filhos têm, se são rotarianos ou leoninos, corintianos ou palmeirenses.


Acho que todo escritor gosta desse brinquedo, no mínimo, criativo. E a sala de espera de um "consultório médico", como diz a atendente absolutamente normal (apenas uma pessoa normal lê tanto Paulo Coelho como ela), é um prato cheio para um louco escritor como eu. Senão, vejamos: Na última quarta-feira, estávamos:

1. Eu,
2. Um crioulinho muito bem vestido,
3. Um senhor de uns cinqüenta anos e
4. Uma velha gorda.
Comecei, é claro, imediatamente a imaginar qual seria o problema de cada um deles. Não foi difícil, porque eu já partia do principio que todos eram  loucos, como eu. Senão, não estariam ali, tão cabisbaixos e ensimesmados.

(2) O pretinho, por exemplo. Claro que a cor, num país racista como o nosso, deve ter contribuído muito para leva-lo até aquela poltrona de vime.

Deve gostar de uma branca, e os pais dela não aprovam o namoro e não  conseguiu entrar como sócio do "Harmonia do Samba"? Notei que o tênis estava um pouco velho. Problema de ascensão social, com certeza. O olhar dele era triste, cansado. Comecei a ficar com pena dele. Depois notei que ele trazia uma mala. Podia ser o corpo da namorada esquartejada lá dentro.
Talvez apenas a cabeça. Devia ser um assassino, ou suicida, no mínimo.
Podia ter também uma arma lá dentro. Podia ser perigoso. Afastei-me um pouco dele no sofá. Ele dava olhadas furtivas para dentro da mala assassina.

(3) E o senhor de terno preto, gravata, meias e sapatos também pretos?

Como ele estava sofrendo, coitado. Ele disfarçava, mas notei que tinha um pequeno tique no olho esquerdo. Corno, na certa. E manso. Corno manso sempre tem tiques. Já notaram? Observo as mãos. Roía as unhas.Insegurança total, medo de viver. Filho drogado? Bem provável. Como era infeliz esse meu personagem. Uma hora tirou o lenço e eu já estava esperando as lágrimas
quando ele assoou o nariz violentamente, interrompendo o Paulo Coelho da outra. Faltava um botão na camisa. Claro, abandonado pela esposa. Devia  morar num flat, pagar caro, devia ter dívidas astronômicas. Homossexual?
Acho que não. Ninguém beijaria um homem com um bigode daqueles. Tingido.

4) Mas a melhor, a mais doida, era a louca gorda e baixinha. Que bunda imensa. Como sofria, meu Deus. Bastava olhar no rosto dela. Não devia fazer amor há mais de trinta anos.

Não! Tirou um terço da bolsa e começou a rezar. Meu Deus, o caso é mais grave do que eu pensava. Estava no quinto cigarro em dez minutos. Tensa. Coitada. O que deve ser dos filhos dela? Acho que os filhos não comem a macarronada dela há dezenas e dezenas de domingos. Tinha cara também de quem mentia para o analista.
Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por ela, se a conhecesse.

Acabou o meu tempo. Tenho que ir conversar com o meu psicanalista. Conto para ele a minha "viagem" na sala de espera.

Ele ri.
Ri muito, o meu psicanalista, e diz:
O Ditinho é o nosso office-boy;
O de terno preto é representante de um laboratório multinacional de remédios lá no Ipiranga e passa aqui uma vez por mês com as novidades;
A gordinha é a Dona Dirce, minha mãe;
E você, não vai ter alta tão cedo.


Luís Fernando Veríssimo (1936) - Cartunista, tradutor, roteirista, romancista e  escritor brasileiro. Mais conhecido por suas crônicas e textos de humor.

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