A escritora Lya Luft, 81 anos, lança este mês seu 31º livro, As coisas humanas, dedicado a seu filho André, que morreu em 2017, aos 52 anos. Nesta entrevista, Luft fala sobre a experiência de lidar com a perda do filho, sobre a obra e sobre o que mudou nela desde então.
O agrônomo André Luft morreu vítima de uma parada cardiorrespiratória, surfando, em Santa Catarina, em novembro de 2017.
Quando o socorro chegou, ele já não estava mais vivo.
De lá para cá, Luft não publicou nenhuma obra. Em setembro, teve um infarto, decorrente, os médicos acreditam, de efeitos emocionais causados pela morte do filho.
Agora, se considera refeita. Ao menos em parte.
"A melhor coisa que você pode fazer para homenagear quem se foi é tentar viver direito de novo sua vida. Não pode deixar que a morte destrua tudo que tem de bom. Voltei a ser uma pessoa ligada na vida. Mas algo se apagou em mim".
1. Não estamos programados para a perda de um filho. Como foi essa experiência para a senhora?
É a coisa mais indizível, intraduzível. Fica a imagem dele, que era um homem muito grande, muito bonito. Olhos impressionantes. Azul-claros impressionantes. A voz, a fala, ele tocava e cantava muito bem. Chegava e dizia “E aí, dona Lya” (ela engrossa a voz, como se imitando). Passou os últimos anos na África com a mulher, administrou uma imensa fazenda em Moçambique, eu o chamava de gigante gentile, por ser muito alto. Muito amoroso comigo, com a família.
2. A senhora sempre escreveu sobre perdas. E agora?
Eu perdi relativamente cedo meu pai, pessoa mais marcante de minha vida, quando eu tinha 35 anos. Depois perdi Hélio e, então, o pai de meus filhos, com quem voltei a casar, Celso Luft, que adoeceu e morreu. Eu tinha tido várias mortes, mas a coisa do filho é... Sobretudo porque ele era uma pessoa muito intensa. Nos primeiros meses, fiquei catatônica. Depois, com o tempo, tenho filhos, Susana, médica, e Eduardo, professor de filosofia, netos, meu companheiro, Vicente, engenheiro e escritor. A vida chama. Há o que escrevi no livro O lado fatal, poemas de quando o Hélio morreu. A melhor coisa que você pode fazer para homenagear quem se foi é tentar viver direito de novo sua vida. Não pode deixar que a morte destrua tudo que tem de bom. Voltei a ser uma pessoa ligada na vida. Estou quase normalzinha, estou bem, estou direitinha. Claro que tem alguma coisa em mim que se apagou com a morte do filho, e isso qualquer pessoa que passe pela experiência vai te dizer a mesma coisa.
3. O que se apagou?
Eu era mais alegre antes. Sempre fui... Eu tenho um olho alegre que vive e convive e outro triste que observa e escreve. Você não passa impunemente por uma experiência dessas. Mas, enfim... Tenho minha vidinha, minhas coisas. Pensando inclusive já num novo livro, e já tem título: A alma dividida. Não sei ainda o que vai ser. Não vai ser romance, vai ser meio Perdas e ganhos, O rio do meio ou Reflexões. Primeiro quero que este pobre filho As coisas humanas aconteça (risos), em meio à pandemia.
4. O que há do André no livro?
Ponho no livro algumas coisas da infância dele, como o dicionário que ele, criança, escreveu. Aquilo é verdadeiro. Tentei fazer um livro que não fosse uma lamentação, sombrio, mas que tivesse alguma coisa da realidade, que fosse a presença dele. No dia 29 de abril, ele teria feito 54 anos. No dia 2, fez dois anos e meio que ele morreu. Chamávamos ele de Alemão. Pessoa muito presente, muito intensa, era o nosso Alemão. Eu resolvi reunir esses textos e fazer novos e dedicar o livro a ele.